ANDRÉIA
ALVES PIRES
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O esquecimento viaja
em carro negro
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(Traducción
al portugués de_"El
olvido viaja en auto negro,"_de_Nela
Rio)
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Lentamente,
como se tivesse a intenção de mostrar-se aos poucos, o carro
negro dobrou à direita entrando na rua como se não precisasse
de permissão, como se a rua fosse sua. Entrou com a autoridade de
dono, rebenque em mãos golpeando suas botas, com a insolência
do prepotente que olha devagar porque sabe que tem os bolsos cheios, a
pança cheia, a estância cheia de peões e a cama cheia
de serventes. Com a lentidão do passo forte e pesado de quem tem
a milonga e o violão.
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Julinho deixou
de jogar a bola e olhou com seriedade o carro.
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Lentamente,
como se não tivesse a intenção de mostrar-se mais
do que aos poucos, o carro negro dobrou à direita entrando na rua
como se precisasse de permissão, como se a rua fosse de outro e
pedisse desculpas por entrar assim, sem convite. Entrou com a timidez do
que não tem muito, tateando o caminho aos poucos evitando o coice
que o afastaria de golpe, com os olhos baixos de quem olha devagar porque
sabe estar fora do lugar. Com a lentidão do passo tateante, de quem
por acaso ouve: “tira essa carcaça daqui!”, ao que sente crescer
a fúria no peito a ponto de explodir.
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Yolanda viu
o menino que havia recolhido a bola, o carro negro que havia dobrado a
esquina e deixou cair a cortina que havia levantado momentos antes.
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Lentamente,
como se tivesse a intenção de mostrar-se aos poucos, o carro
negro dobrou à direita entrando na rua, como se quisesse seguir
escondido, sabendo que essa rua não era sua. Entrou espiando, com
a vulnerabilidade do que sabe estar sendo perseguido, do que olha devagar
porque não sabe de onde virá o golpe. Com a lentidão
do passo de quem busca refúgio, proteção, do que tem
vontade de escapar, mas se contém. O que observa cada pedra, cada
árvore, cada casa e calcula a próxima viagem temendo terminar
contra o paredão.
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Lúcia
pensou ver a mulher da casa da frente fechar a cortina, viu o menino que
jogava bola e o carro negro que dobrou a esquina.
Lentamente,
como se tivesse a intenção de mostrar-se aos poucos para
causar a grande surpresa, o carro negro dobrou à direita entrando
na rua como se respirasse pó de estrelas, como se a rua tivesse
se vestido de festa para recebê-lo. Entrou com a vaidade do que sabe
ser admirado, com a audácia do adulado que olha devagar porque sabe
estar conquistando todos os que estão atrás das guirlandas,
das serpentinas, do papel picado. Com a lentidão do passo de quem
sabe ser privilegiado, do que tem sapatos novos de verniz sobre as botas
de soldado subitamente promovido, do que dirige a companhia e pode fazer
cantar os que caem em suas mãos.
Petronila
vinha da padaria, reconheceu Yolanda e Julinho, e quando se apressava para
chegar à casa de Lúcia o carro negro dobrou a esquina.
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Lentamente,
como se tivesse a intenção de mostrar-se aos poucos, arrastando-se
pelo pavimento, o carro negro dobrou à direita entrando na rua como
se não quisesse que o vissem, como se a rua fosse um lugar cheio
de luzes que quisesse evitar. Entrou com o sigilo da clandestinidade, como
se quisesse colocar um par de óculos escuros, com o silêncio
da infidelidade, da humilhação de trair, com a insegurança
do que olha devagar porque sabe que podem descobri-lo ou do que assobia
baixinho fazendo-se de desentendido. Com a lentidão do passo de
quem tem o rabo preso, do enredado em mentiras, do delator e do vendido.
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Maria do Carmo
deixou de ler o livro, fechou-o com impaciência e levantou-se a tempo
de ver o menino deixar de jogar, a mulher de enfrente olhando, buscando
respostas que pressentia serem trágicas, e o carro negro dobrar
a esquina.
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Lentamente,
como se tivesse a intenção de mostrar-se aos poucos, o carro
negro dobrou à direita entrando na rua como se fosse o primeiro
de uma larga procissão, como se a rua fosse o caminho a uma eternidade
com classe, como se a rua fosse apenas um acidente plebeu. Entrou com a
solenidade do prestígio, com odores de uma extensa tradição,
com o olhar sempre do alto, com sobrancelhas mais altas ainda, o olhar
do que observa devagar porque todo o resto está abaixo dele. Com
a lentidão do passo funerário que vai deixando uma história
esculpida no asfalto que não coincide com a história.
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Soledad Gonzáles
suspirou ao fechar as persianas, ao ver o menino recolher a bola, ao ver
Petronila vir da padaria e ao ver o carro negro dobrar a esquina.
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Lentamente,
como se tivesse a intenção primeira de mostrar-se aos poucos,
o carro negro dobrou à direita entrando na rua e definitivamente
plantou-se de corpo inteiro, com metralhadoras e decretos. Então
elas souberam. Vestidas de companheiras, mães, filhas, amantes,
esposas, donas de casa, profissionais, as mulheres haviam visto chegar
em carro negro as conseqüências de um compromisso militante.
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Contam que
o silêncio, o pó, o que não se quer dizer, o esquecimento
meticulosamente fabricado – o que faz voltar a cabeça, como se olhando
para o outro lado os fatos deixassem de existir – cobriram a rua Quintana;
e que Yolanda, Lúcia, Petronila, Maria do Carmo e Soledad Gonzáles
ficaram petrificadas nas estatísticas oficiais no gesto de olhar
o carro negro. Julinho, que chegou a ter uma oficina mecânica em
um bairro de outra cidade, cada vez que precisa arrumar um carro negro
sente algo no estômago, como se estivesse cheio de gritos de mulheres
por dentro, e trabalha intensamente para esquecer o que insistem que não
existiu.
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